Todos os anos a história repete-se: dia 1 de novembro, um dia vivido de forma muito distinta por milhares de pessoas. Para alguns é um feriado bem-vindo já que passarão o dia a dormir ou a descansar para recuperar dos excessos da noite anterior, fruto da adoção de uma qualquer tradição norte-americana que nada tem a ver com a história e tradições do nosso país. Muitos outros congratulam-se por não irem trabalhar, por poderem aproveitar este feriado para passarem o dia enfiados no shopping a adiantar as sempre stressantes prendas de Natal. Contudo, para muitos outros, este continua a ser um dia triste e de saudade. Um dia que se dispensava do calendário, uma vez que significa que existem entes queridos já falecidos que é necessário lembrar e celebrar.
No meu caso, desde pequena fui habituada a visitar o cemitério neste dia. Ainda que frequentemente, durante o ano, até apreciasse ir com a minha mãe ao cemitério, ajudá-la a arranjar as floreiras, no dia 01 de novembro nunca gostei de fazer essa visita. Os semblantes com quem nos cruzamos estão carregados e a tristeza de muitos é palpável. Apesar disso, a minha renitência em visitar o cemitério neste dia prende-se com o facto de existirem campas que passam 364 dias do ano completamente abandonadas. Contudo, naquele dia, eis que surgem revigoradas e asseadas com as flores mais caras que a florista tinha. Gasta-se aquilo que se tem e aquilo que não se tem para que todos vejam, nesse dia, o quanto essa pessoa é apreciada. Os entes queridos, nunca vistos por aquelas paragens, nesse dia vestem o seu melhor fato escuro, levam o banquinho debaixo do braço e ali ficam o dia todo a venerar as aparências. Ao longo do dia vão comentando o que este veste, com quem aquele chega e com quem o outro se zangou a semana passada, esquecendo o motivo principal e único porque ali deviam estar: prestar homenagem àqueles que já partiram.
Talvez esta seja uma realidade típica de lugares mais pequenos, onde todos se conhecem e esta não seja uma realidade presente nos grandes aglomerados populacionais. Ou talvez esta realidade se repita exatamente da mesma forma. Mesmo que não conheçamos ninguém com quem nos cruzamos nesse dia, é importante que perfeitos desconhecidos fiquem plenamente convencidos da nossa devoção e lembrança por aquele que partiu, ainda que isso signifique, muitas vezes, que o mesmo cuidado e afeição eram uma miragem quando em vida. Infelizmente, são muitos aqueles que preferem viver de aparências e que contam mentiras para si mesmos, preferindo acreditar que um ramo de flores comprado no dia 01 de novembro e uma vela acesa desculpam anos de negligência.
Contudo, nem tudo são más lembranças neste dia. Quando criança, o dia 01 de novembro não era apenas dia de ir ao cemitério. Era também dia de andar pelas ruas da aldeia a pedir os fieizinhos a vizinhos e conhecidos. Em muitas localidades esta tradição era conhecida como pedir o pão-por-Deus. Lembro-me que, nesse dia, saltava da cama de manhã cedo, sem qualquer dificuldade e sem que a minha mãe me tivesse de chamar vezes sem conta, uma vez que ia já fazendo contas aos presentes que iria recolher no meu saco de pano. Naquela altura, as moedas eram uma raridade e muito menos havia espaço para chocolates e gomas como acontece atualmente. Muitas vezes recebíamos peças de fruta ou legumes que os vizinhos cultivavam nos seus campos ou pequenas hortas. Apesar disso, ficava em êxtase quando um vizinho agricultor me dava milho que usava para fazer pipocas quando chegava a casa. Um quase tesouro recebido, uma vez que garantia que, depois da visita ao cemitério a diversão estava garantida com a tigela de pipocas, um cobertor no sofá e um qualquer filme na televisão, num dos dois canais que existiam naquele tempo. Além disso, a expetativa começava logo a aparecer, uma vez que, no primeiro dia de regresso às aulas, todos partilhávamos alegremente o quanto tinhamos conseguido amealhar naquele dia, vangloriando-nos sobre a imponência do tesouro arrecadado.
Hoje, esta tradição também se perdeu e fomos engolidos por novas tradições entretanto importadas. Agora é frequente vermos bruxas, fantasmas, vampiros ou aranhas a percorrerem as localidades na noite do dia 31 de outubro em busca de guloseimas. Tal como dita a tradição norte-americana, também em Portugal, os mais pequenos batem às portas e questionam os seus habitantes sobre se estes preferem doçuras ou travessuras. Caso as pessoas abram a porta e recompensem os mais pequenos com toneladas de açúcar serão uma doçura. Contudo, caso optem por não abrir a porta arriscam-se a ter a sua casa atingida com ovos ou coberta com papel higiénico. É certo que esta componente retaliatória da tradição ainda não está muito enraizada na nossa cultura, porém, acredito que será apenas uma questão de tempo até que isso aconteça. É inegável a força e poder que a indústria cinematográfica de Hollywood tem, motivo pelo qual a luta com a tradição nem chegou a começar resultando numa vitória retumbante e sem esforço do Halloween, em detrimento dos fieizinhos.
Apesar disso, vale a pena perceber quando surgiu esta tradição de rumar aos cemitérios no dia 01 de novembro e comemorar o Dia de Todos os Santos. De acordo com um artigo publicado em 2022, pela Rádio Renascença, a “Igreja do Oriente começou esta celebração no século IV”, ainda que, no Ocidente a tradição tenha começado apenas 300 anos depois. Além disso, de acordo com o mesmo texto, este dia existe para nos lembrar de todos aqueles que foram chamados à santidade. Por sua vez, o Halloween, assinalado na noite de 31 de outubro, ao contrário do que muitos acreditam, não teve origem nos Estados Unidos da América, mas sim na Europa, com tradições pagãs que assinalavam a tradição celta de celebração do novo ano, do fim das colheitas, da mudança de estação e da chegada do inverno, sendo que, de acordo com esta tradição, nessa noite os fantasmas dos mortos visitavam os vivos. Assim, enquanto que o Dia de Todos os Santos celebra a vida, uma vez que comemora a luz e a ressurreição, o Halloween vangloria a morte.
Seja qual for a festividade que escolhamos, uma coisa é certa, a vida deve vencer sempre, razão pela qual devemos celebrar aqueles que connosco a partilham. Digamos amo-te, gosto de ti, vezes sem conta. Demos beijos e abraços até estarmos cansados. Aproveitemos os conselhos daqueles que estão connosco e agradeçamos a sua companhia. Apreciemos aqueles que nos deram e continuam a dar colo e aqueles que são a família que escolhemos. Agradeçamos sempre àqueles que nunca nos deixam cair e àqueles que sempre estão lá para nos levantar quando a queda for inevitável. Recompensemos aqueles que não desistem de nós e que connosco lutam para que sejamos sempre melhores. Congratulemos aqueles que nos dizem a verdade e que nos dizem não, porque sabem que só assim seremos capazes de crescer. Ninguém sabe quanto tempo tem de vida, por isso esforcemo-nos por aproveitar cada momento. A vida é um filme sem sequela…
Por Armanda Bragança